Jean Giraud - ‘Moebius’









Nascimento: 8 de maio de 1938







No mundo dos quadrinhos, o artista Jean Henri Gaston Giraud possui uma vida dupla. Como "Jean Giraud" ele é o autor da lendária série de faroeste "Blueberry". Como Moebius, é um dos mais inovadores artistas de HQs do século XX. Depois de freqüentar vários estúdios de arte enquanto jovem, como a Escola de Artes Aplicadas de Paris, Giraud desenha seus primeiros quadrinhos e ilustrações para revistas como Far-West, Sitting-Bull, Fripounet et Marisette, Âmes Vaillantes e Coeurs Vaillants nos anos de 1950. Ao ser convocado pelo serviço militar na Argélia, colabora com a revista do exército "5/5 Forces Françaises". De volta para a vida civil, aprende as mais refinadas técnicas de quadrinhos com Jijé, de quem é assistente no episódio "La route de Coronado", da série de western "Jerry Spring", na revista "Spirou". Também trabalha com Jean-Claude Mézières na coleção "L´Histoire des Civilisations" de Hachette, entre 1961 e 1962.Quando Jean-Micheal Charlier oferece a Jijé a proposta para uma nova série de faroeste, Jijé propõe Giraud como artista, e assim nasce a série "Blueberry". O primeiro episódio da série - "La Jeunesse de Blueberry", estreou na revista Pilote em 1963. "Blueberry" logo se torna a grande estrela dos quadrinhos de western na Europa. Ao longo dos anos tem vários especiais da série, como "La Jeunesse de Blueberry" e "Marshall Blueberry" . A partir da segunda metade dos anos de 1960, Giraud começa a construir uma carreira paralela, com um trabalho mais experimental sob o pseudônimo de "Moebius". Ainda com seu próprio nome, continua a trabalhar em "Blueberry" e em seus especiais, criando uma nova personagem com Charlier para uma edição especial da "Pilote" de 1979: "Jim Cutlass". Apesar de ser um personagem de uma só história num primeiro momento, Jim Cutlass foi revivido por Christian Rossi em 1987 e continuado em "À Suivre" com arte de Rossi e roteiro de Giraud em 1990. Por causa de um desentendimente com a editora Dargaud, Giraud publica Blueberry, a partir de 1979, em revistas como "Super-As" e "Métal Hurlant".Com o pseudônimo Moebius, seu primeiro trabalho nasce em 1963, numa série de histórias curtas para a revista Hara-Kiri. Nos anos seguintes, Moebius se tornaria famoso no mundo por sua arte que mistura ficção científica e erotismo, com um visual impressionante e muitas vezes fantástico. Faz inúmeros trabalhos com Alejandro Jodorowsky, como a revista de histórias fantásticas "Arzach", e para vários números da "Métal Hurlant". Começando em 1969, Moebius faz uma série de ilustrações de ficção científica para a "Opta", que marca o início da carreira de Moebius fora do meio comercial.Nos anos seguintes, trabalha em "L´Écho des Savanes" com "Cauchemar Blanc", entre outra publicações. Em 1975, com Jean Pierre Dionnet, Philippe Druillet e Bernard Farkas, funda Les Humanoïdes Associés e lança Métal Hurlant, influente publicação francesa de quadrinhos nos anos 70. Em 1983, Moebius também começa a comercializar seu trabalho. É co-fundador da companhia Aedena que tem sua sede em Los Angeles. Durante sua estada nos EUA, vê suas obras mais importantes publicadas pela Marvel. Também ilustrou o Surfista Prateado de Stan Lee, e coopera com Jean-Marc Lofficier com o roteiro de "The Elsewhere Prince" e de "The Onix Overlord", respectivamente desenhados por Eric Shanower e Jerry Bingham. Depois de intensa atividade nos Estados Unidos, retorna à Europa em 1989, onde continua com seu trabalho. Em 1994, dentre vários projetos, começa uma nova versão do clássico de Winsor McCay "Little Nemo", desenhado por Bruno Marchand. Além de sua extensa carreira nos quadrinhos e ilustrações, também atua no cinema, como em storyboards, cenários e figurinos para filmes como Tron, filme da Disney de 1980, Alien, Dune, "Little Nemo" (Tóquio, 1985), Starwatcher, entre outros.





Fonte:http://lambiek.net/artists/g/giraud.htmhttp://www.bpib.com/illustrat/giraud.htm

Philip K. Dick


"O homem normal não sabe que tudo é possível" - Philip K. Dick

Philip Kendred Dick (1928-1982) era um alucinado. Daqueles típicos hippies drogados dos anos 60. Enxergava raios de luz rosa. Acreditava em reencarnações e em conspirações globais.
Acontece que o escritor, nascido em Chicago, mas californiano de formação, diferenciava-se da maioria dos paranóicos pelo teor da sua obra. Dick escreveu 36 romances - alguns em quinze dias, durante delírios turbinados por anfetaminas - mais cinco historietas curtas, produzidas no início de sua carreira, entre 1952 e 1956. Tecnicamente, sua ficção-científica não se aproximava da classe de um Arthur C. Clarke, estava mais para um estilo bem folhetinesco. Mas Dick sobreviveu ao tempo, superou sua geração graças aos temas abordados em seus livros. Há quarenta anos, o escritor discutia ética e experiências genéticas, liberdades individuais e problemas de identidade, controle de mentes e demais interferências humanas na ordem natural das coisas. O escritor era um visionário.
Muitas das experiências reais de Dick (foi abandonado pelo pai aos cinco anos de idade, assistiu à morte prematura das suas irmãs gêmeas recém-nascidas, além de casamentos desfeitos e problemas com drogas) serviram para construir uma personalidade pessimista. Em seus livros, o futuro sempre seria pior do que o tempo presente. A Los Angeles de Blade runner - O caçador de andróides (Blade runner, de Ridley Scott, 1982), fria, suja, escura e superpopulosa, era fiel ao pensamento do autor. O quarto imundo do cirurgião de olhos, exibido em Minority report, provavelmente foi imaginado assim por Dick.
Nos livros, fica evidente o descrédito no governo, nas autoridades. Seu primeiro romance, Solar Lottery (1955), exibe um mundo comandado por lógica e números: os governantes mundiais são escolhidos numa sofisticada loteria. Por outro lado, há também a porção metafísica. No fim da carreira, Dick produziu textos autobiográficos fantasiosos, descreveu experiências com alienígenas e combates entre o Bem e o Mal, baseados em preceitos religiosos.
A consolidação veio somente depois da sua morte. Por mais que o trocadilho seja perigosíssimo, seus seguidores ostentam o orgulho de se denominarem dickheads. Veneram uma personagem folclórica, suspeita de ter sofrido de esquizofrenia, mas capaz de imaginar coisas que hoje se tornaram reais, como a clonagem e os Big Brothers da vida.
Adaptadas ao cinema, suas obras tornaram-se cult-movies. Os dois exemplos mais célebres, Blade runner e O vingador do futuro (Total recall, 1990), serviram para impulsionar as carreiras dos diretores Ridley Scott e Paul Verhoeven. Mas, se o reconhecimento é merecido, a fama já causa alguns problemas. Com o tempo, adquirir o direito de seus textos tornou-se um investimento e tanto, quantia suficiente para inviabilizar inúmeros projetos cinematográficos.
Filmes como Gattaca (de Andrew Niccol, 1997), Pi (de Darren Aronofsky, 1998) e Matrix (The Matrix, de Andy e Larry Wachowski, 1999) somente esbarram em conceitos já imaginados pelo autor. Atualmente, além do filme de Steven Spielberg, apenas Impostor (2002), de Gary Fleder, arrisca-se a bancar uma adaptação direta. Uma pena. E pensar que a história de Minority report, altamente profética, foi publicada na revista Fantastic Universe no longínquo ano de 1956.


2002 também foi um ano significativo para a ficção cientifica. Entre inúmeros aniversários importantes, lá se foram dez anos da morte de Isaac Asimov, autor que deixou uma das obras mais volumosas e significativas tanto na ficção quanto na divulgação científica. E lá se foram também vinte anos cravados que Philip K. Dick (nascido em 1928) deixou esse mundo, para, quem sabe, estar "perdido em visões enevoadas de uma realidade arquetípica de protoforças cósmicas latentes no universo temporal" ("Clãs da Lua Alfa", 1964); e, como ele veio a falecer justamente durante a montagem final do filme "Blade Runner, O Caçador de Andróides", baseado em obra sua, tivemos, também, o aniversário deste que é considerado o segundo melhor filme de ficção cientifica de todos os tempos. A despeito desse fato, entretanto, na época em que foi lançado, grande parte de crítica e público não compreendeu a profundidade do filme e virtualmente o abandonou, para vir a redescobrí-lo muitos anos mais tarde e a amá-lo como a um "cult". E talvez esse fato se justifique (pelo menos em partes), pois somente no começo dos anos de 1990 é que foi descoberta a versão original do final, aquela que Ridley Scott (o diretor) foi proibido de utilizar na montagem que seria levada às telas (ele teve de fazer uma versão alternativa, mais "soft", devido à pressão dos produtores). Essa versão alternativa não agradava ao diretor e nem mesmo aos atores envolvidos com a produção (incluindo Harrison Ford, o cabeça do elenco), mas, por motivos comerciais, ela teve de ser utilizada. Só depois que a versão original misteriosamente apareceu, em 1991, é que se percebeu como era medíocre e patético aquele final tipicamente hollywoodiano que os produtores impuseram; além de quebrar toda a dramaticidade da história, esse final (feito com sobras de "O Iluminado",1980, de Stanley Kubrick), funcionava unicamente como um verdadeiro anticlímax, sem deixar margem para qualquer tipo de especulação (somente pode perceber isso quem sente um arrepio na espinha quando Deckard, o personagem central, antes de entrar no elevador com Raquel, para seguir adiante num futuro completamente indeterminado, pisa naquele unicorniozinho de papel: nunca um elemento tão insignificante significou tanto).
"O Caçador de Andróides" ("Do Androids Dream of Eletric Sheep?", 1968) foi o primeiro livro de Philip K. Dick que tive a oportunidade de ler (talvez por ser o mais fácil de se encontrar nesse país de oportunismo comercial acima de qualquer suspeita) e desde então caí fascinado pela obra desse autor complexo e definitivamente inovador. Embora nem se compare a Asimov no aspecto produtivo, Dick é igualmente idolatrado não só nos Estados Unidos, mas em todo mundo. Em vida, não foi levado muito seriamente, é verdade, mas bastou morrer para virar uma espécie de culto entre os amantes do gênero. Principalmente depois do lançamento do filme de Scott, que, a exemplo do também fascinante "Alphaville" (1965), de Jean Luc Godard, é um dos poucos "sci-fi noir" legítimos, a despeito do fato de ser ambientado numa sufocante megalópole cyberpunk que é a Los Angeles de 2019. É verdade que Dick não foi um inovador absoluto, partindo do nada para remodelar os parâmetros de um gênero que, de certa forma, caminhava numa mesmice crescente. Quem as obras definitivas de Theodore Sturgeon "Além do Humano", "O Homem Sintético" e "Vênus mais X" sabe do que estou falando quando me refiro ao tipo de inovação que Dick iria propor em sua obra (Sturgeon foi, ao que parece, o primeiro dos autores da velha guarda da FC americana a fazer a transição da chamada era clássica - voltada aos aspectos "hards", tecnológicos - à nova geração, ao "soft", de preocupação psicológica e interior; Heinlein veio depois). Mas o fato é que Dick - um dos legítimos frutos diretos dessa nova era - foi o primeiro a se aprofundar verdadeiramente nestes aspectos mais obscuros e ignorados da ficção científica, ali ficando até morrer. Ao contrário de muitos outros autores, ele não quis se projetar para fora, mas para dentro do ser humano, fato que o tornou um dos verdadeiros pais da camada "New Wave" no início da década de 1960. Por trás de seus fascinantes robôs indagadores e seus famosos conflitos de realidade ou jogos de paranóia se escondia uma complexidade quase sobre-humana de indagações filosóficas e metafísicas. Ao longo de seu trabalho, e ainda que de maneira completamente desorganizada, Dick explorou à exaustão todas as possibilidades das questões "realidade" e "não-realidade", ou os diversos modos como ambas podem ser interpretadas. No famoso "A Formiga Elétrica" (1969), por exemplo, um homem comum acorda um belo dia num hospital e descobre, para seu total espanto, que é um autômato, um simulacro enganado por uma realidade o tempo todo forjada em seus próprios mecanismos vitais. Mas essa não é a maior das surpresas... Em "Identidade Perdida" (1974) ocorre algo semelhante; porém, dessa vez toda a distorção provocada naquilo que parece ser o real é causada pela utilização da poderosa droga KR-3, que não só é capaz de alterar o equilíbrio da realidade de quem a ingere, mas também afetar esse equilíbrio de forma a distorcer tudo ao seu redor, no processo. No brilhante "Se Benny Cemoli não existisse" (1963) a distorção da realidade é causada de maneira intencional pelos personagens, tendo em vista enganar e saciar os interesses inescrupulosos de uma organização de reabilitação da Terra pós-guerra nuclear através de um jornal homeostático, que falsifica informações. Já no desconcertante "Ubik" (1969) a questão é levada às ultimas conseqüências, quando vemos a realidade se desdobrando em facetas inimagináveis, não só do ponto de vista individual, mas também coletivamente, até mesmo após a morte.
Insaciável "descascador de cebolas" que era, com o passar dos anos Dick se aprofunda ainda mais no tema, tornando-o cada vez mais complexo. Se a religião (fenômeno que o fascinava) vinha aparecendo de forma relativamente superficial em suas histórias até então, o mesmo não se daria com os livros que iria produzir a partir de "Dies Irae" (1976), que seria seguido por "O Mistério de Valis" e "Invasão Divina" (ambos de 1981), formando uma espécie de trilogia cujos contornos haviam sido levemente delineados no surpreendente "Labirinto da Morte" (1970), onde lança algumas interessantes idéias a respeito dos mitos divinos e do possível contato.desses mitos com seus seguidores, numa espécie de alienação "sub-realística". Em "O Caçador de Andróides" o conflito de realidade - e suas quase sempre insuspeitas trocas de valores - é trabalhado de maneira mais sutil, quase alegórica, mas presente. Nesse livro, a alienação sub-realística causada pela religião é apresentada na figura messiânica de Mercer (um guru de valores duvidosos, para dizer pouco), que se manifesta a seus seguidores através de uma "caixa de empatia" (uma espécie de televisão inter-dimensional capaz de estabelecer contato físico), fornecendo um sentido para suas existências - um sentido aparentemente enganoso, se não bastasse (mas sempre devemos lembrar que com Dick nada é o que aparenta ser...) Deckard, afinal, pode ter sido enganado por uma realidade falsa e ser um andróide; embora esta possibilidade não esteja completamente implícita no romance, é fácil perceber que o autor, bastante afeito a colocar dúvidas e mais dúvidas existenciais em seus personagens, deixa bastante perguntas sem respostas quanto a própria objetividade da trama. A questão é: em quem acreditar, afinal? (e essa pergunta se estende a toda obra do autor). No já citado "A Formiga Elétrica" o autor nos fala, através de seu personagem: "a objetividade não passa de um dispositivo sintético que lida com a universalização hipotética de uma infinidade de realidades subjetivas". No glorioso volume de contos sobre robôs "Máquinas que Pensam" (L&PM Editores, Porto Alegre, 1985), organizado por Patricia S. Warrick e Martin H. Greenberg e editado por Isaac Asimov, vemos a seguinte referência: "Desde a primeira obra que publicou, nos idos de 1950 e poucos, Dick se interessou por invenções cibernéticas e o efeito que produzem sobre criaturas humanas. Ele e Asimov figuram entre os escritores mais prolíficos de histórias de robôs e computadores. Dick se mostra mais pessimista que Asimov ao considerar que o homem há de sempre utilizar a inteligência da máquina com critério, pois, segundo seu ponto de vista, a natureza humana está imbuída de um elemento destrutivo, que a leva, com grande freqüência, a empregar mal o poder que as invenções cibernéticas colocaram a eu alcance. Um dos temas que repete com mais freqüência é o de que o homem se transforma, cada vez mais, na máquina ou robôs criados por ele".
Gramophones DigitaisO único incômodo de se ler Philip K. Dick atualmente é que ele tinha a incorrigível mania de ambientar suas histórias em futuros demasiadamente próximos. Seus melhores livros foram escritos na década de 1960 e na maioria deles a trama se passa nas décadas de 80 e 90, de modo que seu futurismo complexo e engenhoso, de uma forma ou de outra, acaba caindo no anacronismo - quase cômico - de nosso passado medíocre... O próprio "Caçador de Andróides" é um exemplo: apesar de ser um dos livros mais complexos e imaginativos da ficção científica, com uma das melhores (senão a melhor) especulações sobre eterno conflito homem-máquina, toda a sua trama, se analisada sob critérios "pouco pacientes", digamos assim, corre o risco de cair na banalidade pelo simples fato de ter sido ambientada no início da década de 1990 do nosso passado - o nosso passado medíocre... Não é à toa que grande parte dos escritores de FC prefere não arriscar na sorte e jogar suas histórias para um futuro longínquo, que proporcione uma dose incalculada de imaginação e possibilite especulações das mais extravagantes na área que tange à tecnologia sem que isso signifique estar pisando terreno pantanoso. (Lembrando que no livro "Do Androids Dream of Eletric Sheep?" o ano em questão é 1992, enquanto no filme a história se passa em 2019).
Embora Ridley Scott tenha feito um trabalho excepcional, criando um filme que não é só considerado um dos melhores da ficção cientifica, mas também como um dos melhores da história do cinema, é claro que o livro é mais complexo, e acho que não poderia ser diferente. Na "Science-Fiction - The Ilustrated Encyclopedia" (Dorling Kindersley Book, London, 1995), John Clute nos diz que o livro não ficou famoso apenas por causa do filme de Scott, mas única e tão somente pela sua própria complexidade, e ainda aponta Dick com um dos mais influentes autores da América na segunda metade do século XX. Não pela sua "ciência", é claro, pois o autor sempre foi bastante arcaico neste aspecto, e nunca se preocupou muito com ele, a bem da verdade; mas sim pelas suas idéias, sempre ousadas e conflitantes, sempre interrogativas. Que no "Caçador de Andróides", entretanto, ele tenha sido incrivelmente moderno do ponto de vista científico, talvez seja pura coincidência. Sim, porque numa época em que as palavras "andróides" e "robôs" significavam seres de metal quase sempre feitos para durar indeterminadamente, mais do que ninguém ele se colocou à frente de seu tempo para especular em torno do que hoje não é mistério nenhum: clonagem, inseminação artificial, fertilização "in vitro", etc. Se suas ovelhas eram elétricas, seus andróides eram muito mais que isso. E que o digam os antiquados aparelhos de teste "Voigt-Kampff" ("mais humano que os humanos", era o slogan). Mesmo na época do filme (começo dos anos 80) essas idéias eram altamente especulativas e, ao contrário do que se vê hoje diariamente, não tinham um contorno definido fora do contexto dos autores de FC. Daí a dúvida: afinal, quem impulsiona quem?: a FC inspira a ciência ou a ciência inspira a FC? Até hoje ninguém conseguiu responder essa pergunta... Partindo desse princípio sólido e sofisticado por si só, Dick escolheu dois paralelos específicos para desenvolver suas especulações, dois elementos distintos no romance: o primeiro, e mais importante, se refere a desumanização crescente do ser humano em vista de seus poderes de criação; e o segundo, por contraste, a tentativa de retornar à humanidade perdida através do amor tardio aos animais, agora extintos. Trocando em miúdos: o homem aprendeu a criar andróides ultra-sofisticados capazes até de superar seus criadores em indagações metafísicas e ao mesmo tempo destruiu grande parte da fauna e flora terrestres, as quais não consegue reproduzir a contento. Portanto, os animais verdadeiros que ainda restaram nesse mundo caótico de poluição e degradação social acima de qualquer controle valem mais - e fácil presumir - que qualquer ser humano. Acabaram por se transformar no mais novo símbolo de status.
Deckard ama os animais, mas tem dificuldades em conseguir um verdadeiro devido aos seus parcos recursos financeiros. Para conseguir um, não vê outra alternativa senão liquidar - ou retirar - um perigoso grupo de andróides invasores - os NEXUS-6, proibidos na Terra e utilizados somente nas colônias espaciais, como escravos -, os mais avançados e capazes da Rosen Corporation (no filme é Tyrell Corporation), pelo que seria convenientemente remunerado. Andróides que, acuados como verdadeiros animais, acabam por desenvolver um sentido de percepção ainda mais aguçado que o dos humanos verdadeiros - talvez pelo fato de que viverão por apenas quatro anos, após o que serão automaticamente desativados. (René Descartes, o filósofo francês, considerava os animais como meras máquinas pelo simples fato de serem destituídos da "substancia espiritual" - a alma - necessária para dar valor e dirigir um organismo; e aí vem a pergunta: o que esses revoltados andróides invasores achariam dessa idéia?...). As coisas perdem seus valores - ou trocam seus valores - e essa questão dos animais se tornado muito mais importantes do que andróides orgânicos inteiramente capazes de compreender o sentido e o significado da existência foi parcialmente abolida na versão em filme de Ridley Scott, assim como a referência a Mercer e à caixa de empatia. O diretor e seus roteiristas Hampton Fancher e David Peoples (com uma mãozinha do próprio Philip Dick, segundo consta) preferiram abordar apenas a primeira questão (a do ser humano se confundindo e perdendo seu status pelos seus próprios simulacros, mais objetivos) e deixar de lado essa espécie de contraste existencial causado pela tentativa de redenção no amor aos animais. No entanto, nessa diferenciação de posturas, o filme ganha pontos por inserir mais explicitamente a idéia - esmagadora - de que o próprio Deckard, afinal de contas, pode ser um andróide.
E Bestas ElétricasOu não. Existem dois finais, apesar de tudo, e embora saibamos qual foi a intenção inicial do diretor, a questão perdura. De qualquer modo, sendo ou não um andróide, a idéia não dilui o impacto, pois o que presenciamos com mais intensidade é a agonia dos seres artificiais, os "replicantes", que lutam por uma humanidade que a própria humanidade está desprezando; eles querem algo que está sendo jogado fora e não se conformam de não conseguirem. Percebem que são no mínimo iguais a seus criadores, mas com somente quatro anos de vida, e querem mais. O filme retrata esta situação tão realisticamente que é impossível ficar indiferente com a espécie humana naquela cena (a mais forte) em que o replicante Roy Betty (interpretado magnificamente por Rutger Hauer), após salvar Deckard de se precipitar do alto do edifício, expõe os seus sentimentos da seguinte forma: "Eu vi coisas como vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da Borda de Órion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo... como lágrimas... na chuva. Hora de morrer".
Após lutar com todas as suas forças e todos os seus instintos de sobrevivência o replicante morre, deixando um atônito Deckard com a alma em frangalhos. Com o seu próprio sentido de existência deformado. Com a dúvida. Nada mal para "algo" que fora criado unicamente para servir como besta de carga móvel do programa de colonização espacial. Mas e quanto a Deckard? Viverá? Terá esse direito? Raquel (Sean Young), por quem, aliás, está apaixonado, sabemos desde o princípio ser uma andróide. Mas e quanto a ele? É possível obter a resposta no brilho impiedoso dos olhos de Gaff (Edward James Olmos), aquele oficial de polícia com mania de dobraduras. "Afinal", complementa o próprio Gaff, "quem vive?". Talvez os replicantes estejam lutando por algo que não vale a pena.

Watchmen - O Filme



O cinema de heróis enfim amadureceu, acompanhando a revolução dos quadrinhos com 24 anos de atraso. O final dos anos 80 foi a era de ouro dos quadrinhos, com obras adultas e inteligentes, que eram chamadas de Graphic Novels (pra diferenciar dos quadrinhos pra crianças). Nesta época vimos coisas como "Batman: o cavaleiro das Trevas", "Batman: A piada mortal", "Demolidor: Amor e ódio" e "X-Men: O conflito de uma raça", também tivemos nos gibis a história recontada de Superman (por John Byrne), de Batman e do Demolidor (ambas por Frank Miller), e aquela que é considerada por muitos a obra-prima dos quadrinhos: Watchmen.
Vocês me viram falar do filme Batman: Dark Knight, e do quanto ele NÃO é pra crianças, mas pensei que esse estilo hardcore (que surpreendeu a todos e deu muito dinheiro) só apareceria novamente nos filmes de heróis em 2010. Felizmente enganei-me. E a prova disso é que acaba de chegar aos cinemas uma história diferente de tudo o que você já viu em termos de heróis mascarados, e que é o equivalente quadrinístico de Moby Dick para a literatura e Bob Dylan para a música. A obra que revolucionou seu meio, destruindo de vez a aura mitológica dos super-heróis e mostrando suas verdadeiras faces por detrás das máscaras.



OS QUADRINHOS
Watchmen é uma mini-série em quadrinhos escrita por Alan Moore e ilustrada por Dave Gibbons, publicada originalmente em doze edições mensais pela DC Comics entre 1986 e 1987. Ganhou vários prêmios, como uma honraria especial (e inédita até hoje para quadrinhos) no tradicional Prêmio Hugo (voltado à literatura), além de ser a única história em quadrinhos presente na lista dos 100 melhores romances, eleitos pela revista Time.
Alan Moore foi genial ao ser o primeiro a escrever que, se heróis existisssem de verdade, o mundo e suas relações sociais não seriam mais as mesmas. E nos mostra nessa Graphic Novel todas as consequências nefastas da presença de vigilantes (watchmen) em nossas vidas. Moore imaginou como seria ter um Super-Homem de verdade do lado dos EUA, como agiria um Capitão América (um agente militar pau-mandado, em prol dos "interesses" da nação) e como se comportaria alguém com um passado tão traumatizante como o do Batman, caçando bandidos nas ruas e seguindo suas próprias regras. Posso adiantar que não é bonito, nem heróico. Reside aí a beleza e a genialidade de Watchmen.
Não satisfeito em contar sua história a partir de sua época (1985), Moore detalhou tudo o que aconteceu nas décadas anteriores, sob influência dos heróis. Começa em 1938, quando justiceiros mascarados, todos sem superpoderes, começam a aparecer pra fazer justiça com as próprias mãos - um deles influenciado pelas histórias em quadrinhos do Super-Homem - até formar um grupo de pessoas (os Minutemen), que saem por aí batendo em bandidos. Até que, nos anos 60, um acidente de laboratório transforma um físico nuclear num ser azul capaz de controlar totalmente a matéria. Nasce então o primeiro e único SUPER-herói da história. Logo o governo o usa para intimidar a União Soviética, e fazer a balança da guerra fria pender totalmente para o seu lado. Ele ganha o nome de "Dr. Manhattan" (escolhido para evocar o terror da bomba nuclear) e Nixon o convoca pra acabar com a guerra do Vietnã, o que é feito rapidamente. Como consequência, não há Watergate e Nixon se reelege indefinidamente. E Dr. Manhattan é alçado ao nível de Deus, papel que assume progressivamente durante a história.
Com as tensões sociais e a escalada da violência, a sociedade começa a questionar a liberdade dos vigilantes, que agiam acima da lei, e como forma de protesto a polícia cruza os braços ("os heróis que resolvam", dizem eles). Em resposta, Nixon promulga em 1977 a "Lei Keene", que exije que todos os "aventureiros fantasiados" se registrem no governo. Suplantados pelo Dr. Manhattan, a maioria dos vigilantes decide se aposentar, alguns revelando suas identidades secretas para faturar com a atenção da mídia (caso de Adrian Veidt, o Ozymandias). Outros, como o Comediante e o Dr. Manhattan, continuam a trabalhar sob a supervisão e o controle do governo. O vigilante conhecido como Rorschach, entretanto, passa a operar como um herói renegado e fora-da-lei, sendo freqüentemente perseguido pela polícia.
É aí que começa a história dos quadrinhos e do filme, em 1985, onde a tensão da guerra fria com a URSS beira o absurdo (assim como na vida real, na época) e o Dr. Manhattan é a única coisa impedindo a URSS de começar um ataque ao Afeganistão e iniciar algo que pode dar início a uma guerra nuclear. Cientistas vão à TV anunciar que o relógio que simboliza o fim do mundo (que existe de verdade) está a poucos minutos da meia-noite (onde meia-noite representa a destruição por uma guerra nuclear) e Ozymandias busca ganhar mais dinheiro com uma linha de perfumes intitulada Nostalgia (remetendo a uma época menos complicada).
O FILME
Além da abertura, que sintetiza todo o background da HQ em alguns minutos, o filme surpreende com um final diferente dos quadrinhos, mas perfeitamente integrado ao espírito da história. Pra ser bem sincero, acho esse final bem mais plausível do que uma lula interdimensional, e para os puristas adianto que este talvez seja o filme mais fiel ao espírito de uma graphic novel, depois de Sin City. Muitos diálogos estão lá, palavra por palavra, muitas cenas são encenadas emulando as mesmas poses dos quadrinhos, até mesmo no esquema de cores (de quando em quando aparece um elemento púrpura, predominante na HQ). Há um respeito quase exagerado ao roteiro, o que deixa o filme um pouco lento às vezes, na tentativa de colocar todos os detalhes desse rico universo criado por Alan Moore na tela. O cinema tem seu próprio ritmo e linguagem, e EXIGE uma adaptação, mas nesse caso a adaptação foi mínima (pra sorte dos fãs), o que reflete no ritmo. Mas, no geral, o filme é muito bom. As cenas do presídio, com Roscharch, são fantásticas. É dele as melhores frases do filme/HQ. Quando ele pronuncia a célebre frase no presídio (não vou estragar pra quem não viu) quase que me levanto pra aplaudir! Obviamente, pra um filme caro como esse, o diretor Zack Snyder (o mesmo do filme "300") teve de fazer concessões, e vê-se isso no enlongamento das cenas de porrada (a la Matrix), no fato de que alguns personagens serem resistentes como os Cavaleiros do Zodíaco (quebram o cenário todo com o corpo, depois levantam pra apanhar mais), mas felizmente Snyder não estragou tudo usando sloooowww mooootionn o tempo todo. Aguardo ansiosamente pela versão do diretor em Blu-ray, ainda mais fiel, com 3 horas e 10 minutos.
O CINEMA
O cinema em que vi, o Box, que é um dos "melhores" do Recife, me decepcionou novamente. Primeiro a direção do cinema resolve que o filme "O menino da porteira" (Brokeback Mountain brasileiro, estrelado pelo cantor Daniel) deve ocupar a sala THX, a mais tecnológica do multiplex. Depois, a sala onde vi estava com o projetor descalibrado, com as cores lavadas e escuras (e eu sabia disso por causa do trailer, que visto no youtube era melhor do que aquilo!!!). Depois reclamam que as pessoas cada vez mais preferem baixar os filmes!! Pelo visto só verei o filme como ele foi REALMENTE filmado quando eu baixar a versão em alta definição pra ver na minha TV, que infelizmente é muitíssimo mais precisa na iluminação e cores do que o melhor cinema daqui!!! Pelo menos o som estava excelente.
TRILHA SONORA
Por falar em som, a trilha sonora do filme é um show à parte. Músicas dos anos 50, 60, 70, muito bem escolhidas e que dizem alguma coisa relativa ao que está sendo mostrado na tela. Não por acaso, Bob Dylan abre e fecha o filme.
OS TEMPOS MUDARAM...
Talvez o telespectador médio saia - quem sabe, até no meio do filme - com a impressão de ter visto um filme muito pretensioso, praticamente um filme de super-heróis existencialista francês. Mas a idéia é exatamente essa, e se você ficou desolado e desconcertado com o final, parabéns, você teve um vislumbre de como ficou quem leu esta Graphic Novel nos anos 80, quando virou a última página.
O crítico Anthony Lane, do jornal New Yorker, disparou sobre o filme: "Incoerente, presunçoso, e cheio de aversão a mulheres, Watchmen marca o final da demolição das tiras de quadrinhos, e deixa você pensando: onde foi parar a comédia?". A resposta está nas próprias páginas da Graphic Novel: "Bem, o que você esperava? O comediante morreu".
Referência: Resenha sobre os quadrinhos no Jovem Nerd;Podcast (áudio) com excelentes comentários sobre os quadrinhos e bastidores do filme;Especial do Zine Acesso;Referências ocultistas em Watchmen (Sedentário e Hiperativo)


 
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